Só nos Estados Unidos estima-se que 800 mil idosos possam estar vivendo com a doença. No entanto, a maioria das vezes o distúrbio não é diagnosticado porque seus sintomas são confundidos com declínios cognitivos inerentes à idade e demências. Principalmente nos últimos 10 anos, a ciência brasileira tem dado uma contribuição singular nessa área com uma tecnologia não invasiva que auxilia no diagnóstico e acompanhamento de pacientes com Hidrocefalia de Pressão Normal
O artista Chico Buarque surpreendeu fãs do Brasil e do mundo, mas, desta vez, não foi com uma música, livro ou qualquer outra atividade relacionada a seu reconhecido talento. O comunicado divulgado informou que Chico Buarque passou por uma cirurgia eletiva – uma derivação ventrículo peritoneal – , no Rio de Janeiro, para tratar um quadro de hidrocefalia de pressão normal, condição que ocorre um acúmulo de líquido intracraniano nos ventrículos cerebrais. A mesma nota tratou de acalmar os fãs com a informação de que o procedimento transcorreu sem complicações, com alta prevista em 48 horas.
A condição vivenciada por Chico Buarque é mais comum do que se imagina, pode acometer pessoas de todas as idades, mas, especialmente, os idosos. Só nos Estados Unidos, a Hydrocephalus Association (HA), entidade sem fins lucrativos, estima que cerca de 800 mil idosos possam estar vivendo com Hidrocefalia de Pressão Normal (HPN). E mais grave: na maioria das vezes o distúrbio não é diagnosticado ou tratado.
O que é hidrocefalia de pressão normal?
O cérebro e a coluna vertebral são banhados pelo líquido cefalorraquidiano (LCR), que flui através das cavidades. A HPN é uma condição neurológica que acontece quando há acúmulo anormal desse líquido nas cavidades do cérebro, aumentando o tamanho dessas estruturas e fazendo pressão sobre esse órgão, a chamada hipertensão intracraniana.
Entre os sintomas que esse quadro pode causar e que se agravam se não forem logo tratados, estão: dores de cabeça, sonolência e alterações no estado mental, como confusão, visão turva ou dupla, náusea, dificuldade de andar e incontinência urinária.
“Um dos desafios do diagnósticos de HPN é que esses sintomas em idosos são, muitas vezes, considerados problemas inerentes à idade. Mais grave ainda quando o declínio da memória é confundido e tratado como demência”, informa o diretor científico e fundador da brain4care, Gustavo Frigieri.
Segundo o neurocirurgião Raphael Bertani, membro titular da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN) e pesquisador com estudos nessa área, a HPN afeta predominantemente idosos, sendo mais comum após os 60 anos. No caso de pessoas com mais de 80 anos, por exemplo, a literatura médica aponta que aproximadamente 6% a 10% podem ter HPN.
“Ou seja, das milhões de pessoas que envelhecem e começam a ter declínio cognitivo, um contingente significativo apresenta HPN. São pessoas que se diagnosticadas e tratadas podem recuperar sua qualidade de vida”, afirma Bertani.
O tratamento cirúrgico da doença para inserção de uma válvula de derivação, por exemplo, pode restaurar e manter os níveis normais de líquido cefalorraquidiano no cérebro. Em geral, esse sistema é composto por dois cateteres e uma válvula que redireciona o excesso de líquido do ventrículo do cérebro para outra parte do corpo, proporcionando a regressão dos sintomas e o resgate da qualidade de vida do paciente.
Evolução tecnológica no diagnóstico
No contexto mundial do diagnóstico de HPN, a contribuição do Brasil é relevante. A ciência brasileira é pioneira no desenvolvimento da tecnologia não invasiva de monitorização do risco de hipertensão intracraniana, que tem como uma de suas aplicações importantes, auxiliar no diagnóstico assertivo de HPN, além de fornecer dados essenciais no acompanhamento e regulagem da válvula de derivação em pacientes tratados com esse recurso.
A história é curiosa e está relacionada aos estudos do físico e químico Sérgio Mascarenhas (1928-2021), que após suspeita de doença de Parkinson, percorreu uma jornada diagnóstica que o levou à confirmação de um caso de HPN. Restabelecido e inconformado com as limitações e complexidades do método invasivo a que foi submetido, voltou à bancada de pesquisa e realizou estudos iniciais com apoio da Fapesp e provou que era possível a monitorização da pressão intracraniana de modo não invasivo. Anos mais tarde, em 2014, para transformar sua descoberta em uma oferta de saúde, Mascarenhas se uniu a ex-alunos e empresários para desenvolver a tecnologia e fundar a brain4care.
A tecnologia brain4care, aprovada pela Anvisa no Brasil, e FDA, nos Estados Unidos, é utilizada em um contexto multimodal, ao lado dos demais exames que fazem parte do protocolo de diagnóstico de HPN em pessoas de todas as faixas etárias. Antes, a única maneira de ter acesso a dados sobre a pressão intracraniana era por métodos invasivos, como a punção lombar ou o padrão ouro – a inserção cirúrgica de um cateter na caixa craniana, utilizado em pacientes neurocríticos.
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