Mais difícil do que a decisão de não ter filhos é lidar com o olhar severo das pessoas quando sabem da escolha feita pela mulher ou pelo casal
A partir do, “Eu não quero ser mãe!”, surgem falatórios e questionamentos sobre este posicionamento, tais como:
“Só se conhece o amor depois de ser mãe…”
“Vai envelhecer e ficar só…”
“Seu marido vai te abandonar se não der um filho a ele…”
“A mulher nasceu pra procriar…”
“E o instinto maternal? Você é mulher! Você vai se arrepender disso…”
E a resposta para todas essas questões é uma só: o desejo pessoal de cada um.
Para a psicóloga clínica na abordagem sistêmica Clarissa Magalhães, doutora e mestre em psicologia clínica, núcleo família e comunidade, atendimento individual a adolescentes e adultos e terapia familiar e de casal, tornar-se mãe é concretizar um desejo e não cumprir uma vocação natural. A mulher que opta por não ter filhos está igualmente concretizando um desejo: o de não exercer o papel da maternidade. Sentir-se no direito de não desejar ter filhos é uma conquista recente do universo feminino, que vem se ampliando gradativamente, mas não sem resistência.
Desde os anos 1970, com o advento da pílula anticoncepcional e do movimento feminista, passamos a viver a dissociação entre a condição biológica da mulher e sua função social, que até então era a de gerar vidas masculinas que pudessem se transformar em força de trabalho, e vidas femininas que reproduzissem o papel (“natural”) de gerar outras vidas. A própria construção social da família se dava em torno disso, com o homem saindo para trabalhar e ganhar o sustento da casa e a mulher permanecendo no âmbito doméstico, a fim de procriar e criar os filhos. Com a entrada no mercado e trabalho e com a conquista do domínio sobre o próprio corpo, a mulher passou a ter a possibilidade de decidir sobre quando, onde e de quem engravidar. E, mais recentemente, “se” engravidar ”, diz Clarissa.
“Perceba que não estamos falando de prioridades. Falar em prioridades faz sentido quando a mulher deseja ter filhos e está considerando o melhor momento, já que hoje ela tem a opção de construir também o papel profissional. Quando não se quer ter filhos, não é uma questão de priorizar a liberdade ou a profissão. É uma questão de não querer, não desejar, e ponto. As pessoas em geral, baseadas na naturalização da maternidade (ser mãe como vocação natural), ainda revelam muita dificuldade em compreender isso, e é por essa razão que, quando ouvem de uma mulher que ela não quer ter filhos, imediatamente perguntam ‘por quê’?”, complementa a psicóloga.
Nesses casos, cabe tanto à família (célula social) quanto à sociedade como um todo apenas respeitar, aceitar e conviver. “Ao compreenderem que a maternidade é um componente possível da, e não inerente à, construção da identidade família e sociedade poderão lidar com a opção de uma mulher por não ter filhos com empatia e respeito” analisa a terapeuta.
Preconceito
Embora estejamos vivendo uma transição no que diz respeito ao olhar sobre a mulher que não deseja ter filhos, ainda existe muito preconceito. Uma leitura moral equivocada, na medida em que naturaliza a maternidade.
“O julgamento acontece porque a maternidade ainda é vista como vocação natural da mulher a ser cumprida, oriunda de uma condição biológica para engravidar, e não como uma potencialidade a ser ou não realizada, a depender do desejo individual de cada uma de nós. Perceba que, no momento em que aceitamos tratar-se de uma potencialidade, passamos a igualar o olhar sobre a mulher àquele que temos sobre o homem: a parentalidade como desejo e projeto de vida”, analisa Clarissa.
Maternidade x culpa
Para muitas mulheres, principalmente para aquelas que vivem em meios mais tradicionais, a opção pela não maternidade ainda acarreta culpa, pois os questionamentos sobre o porquê de não quererem ter filhos vêm embutidos de um julgamento moral inconformista ou, no mínimo, de certo estranhamento acerca do desejo de não se tornarem mães.
É como se a mulher não estivesse cumprindo uma determinação que lhe foi imposta pela natureza. Algumas mulheres, carregadas dessa culpa, chegam a revelar o sentimento de serem menos femininas, colocando em questão a própria feminilidade. O interessante é que, assim como a mulher, o homem também nasce com a potencialidade de procriar, porém sobre ele não recaem dúvidas quanto à masculinidade, pelo fato de ora não desejar ter filhos”, diz a terapeuta.
Por outro lado, Clarissa esclarece que em função da mesma naturalização dos papeis sociais ligados ao feminino e ao masculino há um forte julgamento moral sobre o homem que opta por não trabalhar fora e permanecer em casa cuidando dos filhos. Já à mulher é concedida, tranquilamente, a licença para resguardar-se ao âmbito doméstico.
Quanto à ideia do egoísmo, adjetivo muitas vezes associado à mulher que não deseja ter filhos, é interessante pensar no seu contraponto.
Quando uma mulher afirma que quer ter filhos para realizar o desejo de ser mãe estamos, aí sim, falando de uma decisão autorreferente: a de gerar para satisfazer o próprio eu. É disso que resultam as projeções e idealizações que mães e pais colocam nos filhos, como se estes tivessem sido colocados no mundo para honrar seus progenitores. É uma carga muito pesada, que chega aos consultórios em forma de sintomas como ansiedade, depressão, indecisão profissional, sentimento de inadequação social, de incompetência relacional, dentre tantos outros.”
O sentimento de culpa também está intimamente ligado ao julgamento moral, que é sentido como pressão psicológica. Aprender a lidar com isso requer apropriar-se do próprio desejo, sentir-se livre e responsável sobre o próprio corpo. Quando se conquista esse patamar de segurança e autoconfiança, a mulher passa a bancar emocionalmente a decisão de não se tornar mãe deixando de sentir-se devedora de satisfações à família ou a quem quer que seja.
Clarissa complementa que “quando as mulheres entendem que a maternidade pode ou não fazer parte de um projeto de vida, seja individual ou do casal, as mulheres se veem livres para buscar a completude em outros papéis sociais, como o profissional e/ou o de parceira conjugal, o que vai depender daquilo que fizer sentido na construção de suas identidades individuais”.
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