Fotos: Ricardo Vasques/Câmara de Vereadores
Há 102 anos, a mais letal pandemia do mundo contemporâneo foi controlada em Piracicaba graças a uma união de esforços que envolveu prefeito, vereadores, serviços de saúde e a sociedade. Papéis históricos do acervo do Departamento de Documentação e Transparência da Câmara mostram como ações conjuntas colaboraram para reduzir o impacto da gripe espanhola no município.
Assim chamada por ter se tornado conhecida graças à divulgação pioneira feita pela imprensa da Espanha num período em que os olhos de todo o globo voltavam-se à Primeira Guerra Mundial, a doença desembarcou no Brasil na primavera de 1918, atingindo com maior gravidade a então capital federal, Rio de Janeiro, e São Paulo. Pelo menos 35 mil pessoas no país e mais de 50 milhões, no planeta, morreram em decorrência da infecção pelo vírus, um subtipo da influenza A (H1N1).
Conservado pela Câmara e escrito num português com ortografia diferente da atual, o relatório sobre a gestão do município em 1918 apresentado ao Legislativo pelo então prefeito Fernando Febeliano da Costa menciona que a doença, de maneira semelhante ao verificado hoje com o avanço da Covid-19 no mundo, assumiu “rapidamente caráter epidêmico, ceifando vidas e desorganizando o serviço público e particular”.
Piracicaba, então com uma população de cerca de 55 mil habitantes, registrou em 22 de outubro de 1918 os primeiros casos de gripe espanhola, procedentes da capital paulista. “Apesar de todas as precauções, o mal disseminou-se por toda a zona urbana e seus arrebaldes, só perdendo a sua feição epidêmica no fim de dezembro, prosseguindo, todavia, sua marcha com o mesmo caráter, mas com mais benignidade, nos demais bairros da zona rural”, diz o texto de duas páginas, sob o título “Epidemia de gripe”, da seção “Serviço Sanitário” do relatório.
Se hoje a pandemia do novo coronavírus reforça a importância do diálogo entre Prefeitura, Câmara e sociedade, com ações para reforçar o sistema de saúde da cidade (a exemplo da destinação de R$ 4 milhões do orçamento do Legislativo para cobrir despesas adicionais que a rede de atendimento está tendo em decorrência da Covid-19), um século atrás o caminho adotado para combater a gripe espanhola foi o mesmo de agora: disponibilização de recursos, ampliação da estrutura hospitalar, mobilização de profissionais e apoio da comunidade.
Uma das primeiras iniciativas partiu da Câmara, então composta por 13 vereadores. Aprovada pelo Legislativo em reunião extraordinária em 30 de outubro de 1918, uma resolução de autoria de Sebastião Nogueira de Lima autorizou o prefeito “a tomar todas as medidas extraordinárias e necessárias à assistência pública, agindo como julgar mais acertado com as demais autoridades, sanitárias ou não, de modo a proteger os enfermos e debelar a epidemia de gripe”.
A resolução publicada pelo Legislativo manifestava apoio para que se pusessem “em prática todas as medidas reclamadas pela situação” e reforçava que o prefeito, “com sua reconhecida dedicação e provada competência, saberá agir, convenientemente, a bem da saúde da população de Piracicaba, abrindo para isso os créditos que julgar necessários”, “considerando que é preciso habilitar o Poder Executivo municipal com os meios para o combate à epidemia de gripe”.
Diretor do Departamento de Documentação e Transparência do Legislativo piracicabano, Bruno Didoné de Oliveira diz que o resgate do relatório de 1918 “mostra que a Câmara, já naquela época, atuava de maneira efetiva no sentido de garantir que aquela moléstia tivesse o menor impacto possível na população”.
A atuação dos poderes constituídos, bem como a solidariedade de instituições e da população, tanto naquele momento como no atual, foram e são imprescindíveis para que os efeitos de ambas as pandemias fossem e sejam sentidos da maneira menos pior possível”, acrescenta Bruno.
O presidente da Câmara, Gilmar Rotta (CID), chama a atenção para a relevância do trabalho de pesquisa do Departamento de Documentação e Transparência, ao permitir chegarem à sociedade “fatos importantes da história da política de Piracicaba”, fundamentais para compreender a evolução da cidade e tirar lições de como ela reagiu em momentos de crise.
“Este garimpo, feito juntamente com o processo de digitalização dos processos, tem também a função de resgatar a trajetória da Casa de Leis e dividir com a sociedade esse conhecimento. Este é um papel fundamental da Câmara e que, cada vez mais, queremos que seja compartilhado”, diz o presidente.
MEDIDAS TOMADAS – Como conta o relatório apresentado por Fernando Febeliano da Costa à Câmara, para combater a gripe espanhola em 1918 a Prefeitura “entendeu-se desde logo” com a autoridade sanitária local (o inspetor sanitário Valentim Browne), o que incluiu colocar-lhe à disposição todos os recursos que “fossem precisos para a debelação do mal”, ceder o “hospital de isolamento para acolher os enfermos” e nomear o médico Jorge Fragoso para auxiliar Browne e prestar assistência médica domiciliar aos doentes.
A articulação da comunidade em 1918 foi longamente enaltecida por Febeliano no relatório. “Ao mesmo tempo, todos os elementos vitais da sociedade piracicabana, num belo gesto de solidariedade, irmanados pelo sentimento único do altruísmo, confraternizavam-se para colaborar nesta campanha humanitária”, afirma o documento.
Além de encampar, junto com veículos de imprensa da cidade, um movimento para “angariar toda a sorte de donativos para socorrer a pobreza”, a Cruz Vermelha local liderou a instalação de um posto médico-farmacêutico e de prestação de socorros no prédio da então Universidade Popular e montou um hospital para enfermos sem recursos no edifício da antiga Escola Normal, onde funcionava o Grupo Escolar “Barão do Rio Branco”, abastecido com parte do material do Sanatório São Luiz, “generosamente cedido à municipalidade”.
O comando tanto do posto quanto do hospital coube ao inspetor sanitário Valentim Browne, que “desde o início havia tomado acertadas providências”. Os elogios do prefeito, no relatório, estendiam-se também à “nobre classe médica piracicabana”, “às devotadas irmãs franciscanas no serviço hospitalar”, à Escola Agrícola Luiz de Queiroz e aos voluntários do grupo dos escoteiros, do centro espírita e de clubes, associações e empresas.
Com reconhecimento e orgulho, podemos afirmar que, sem exceção, todos os elementos componentes da sociedade piracicabana cumpriram integralmente o seu dever, na fase angustiosa que atravessamos, merecendo os louvores e a gratidão da população”, escreveu Febeliano. “A epidemia grassou com intensidade, mas benignamente, sendo prontas as providências postas em prática para combatê-la e fartos os recursos, revelando o espírito altamente humanitário dos piracicabanos”, diz o prefeito, em outro trecho do relatório.
Controlada a doença na cidade, o vereador Antonio de Moura Lacerda apresentou “voto de louvor e agradecimento ao digno inspetor sanitário Valentim Browne, aos distintos médicos que o auxiliam na árdua tarefa da debelação da gripe, às associações religiosas, à Cruz Vermelha e mais comissões que desempenharam o seu papel galhardamente, aos escoteiros e, finalmente, a todos que prestaram auxílio para que nada faltasse às vítimas do terrível mal”.
A gripe espanhola atingiu 4.178 pessoas em Piracicaba entre 22 de outubro e 26 de dezembro de 1918, dos quais 2.627 foram casos notificados no posto da Cruz Vermelha, 1.415 por clínicos e 136 hospitalizados. Já o obituário no Registro Civil acusou 88 mortes pela doença no período.
O vírus atingiu a zona urbana de Piracicaba na época e as localidades de João Alfredo, Limoeiro, Monte Alegre, Garcia Marins, Milhã, Godinhos, Congonhal, Paredão, Pau d’Alho, Pau d’Alhinho, Água Santa e Morro Grande. Nos outros bairros, diz o relatório, a doença foi “muito mais benigna, apesar da sua intensidade”.