Com a sonoridade do dialeto caipiracicabano, era mais ou menos assim como no nosso título da matéria de hoje, que os organizadores e os primeiros funcionários da Prefeitura de Piracicaba, iam reconhecendo, a partir daquele agosto famoso de 1974, a segunda geração dos cartunistas de São Paulo e, aos poucos, do resto do pais e depois do mundo todo, que passaram a desafiar os tempos difíceis do nosso ´país naqueles dias, com suas ideias que impactavam a sociedade local e, de repente, “pulavam as barrancas do rio Piracicaba” e iam incomodar São Paulo, Brasília e o resto do mundo que via florescer um dos salões mais antigos do mundo. E a revelar novos talentos do humor gráfico.
Entre os novos “chegantes”, estava um “tar” de Francisco Paulo Hespanha Caruso, conhecido como Chico Caruso, que chegou ao mundo 5 minutos antes do irmão gêmeo, Paulo, também Caruso.
Chico foi chegando de mansinho e passou a frequentar os salões de Piracicaba, inspirando as novas gerações que se formavam na cidade, no Estado de São Paulo e se espalhavam pelo Brasil. Venceu o Salão logo na sua terceira edição realizada em 1976, que é analisado mais abaixo pelo ex-vice governador do Rio Grande do Sul, prof. dr. Antonio Holfeldt; participou de juris de premiação e, em 1986, foi o autor de um dos mais instigantes cartazes da mostra de humor que, já àquela altura, ganhava o mundo. E animou muitas aberturas de salão, ao lado do irmão Paulo, com músicas, cujas letras eram bem humoradas da banda que comandavam, Chico sempre ao piano, dançando, provocando risos e aplausos.
O GLOBO
Na semana que passou, o jornal “O Globo”, que abriga Chico desde 1984, celebrou com várias páginas, os 40 anos de colaborações diárias do caricaturista/chargista, cujas contribuições bem humoradas são publicadas na primeira página daquele jornal.
O traço de Chico Caruso na capa do jornal O Globo é inconfundível. Talento, aliás, parece correr no sangue da família: seu irmão gêmeo, Paulo Caruso, é também um cartunista conhecido. Iniciou sua carreira, antes mesmo de prestar o vestibular para Arquitetura – profissão que nunca exerceu –, no jornal Folha da Tarde, em São Paulo, em 1968.
A censura dos anos de ditadura até tentou sufocar sua criatividade, mas não conseguiu. Passou a colaborar com o combativo jornal Opinião, em 1972, onde deu azo às críticas políticas carregadas de humor que o tornariam conhecido nos anos seguintes. Passou pela Isto É e pelo JB antes de entrar em O Globo, em 1984. Foi ele mesmo quem propôs aos dirigentes do jornal a publicação de charges na primeira página. Desde então, o espaço traz as cores de seus desenhos como arma para fustigar o poder, sempre de forma bem-humorada.
O humor tem uma função humana de superar os problemas. Quando ri de algo, você mais ou menos superou aquele negócio e não está levando aquilo tão a sério. Se o humor político tem uma função social, talvez seja esta: a de superar os atrasos”.
O chargista Francisco Paulo Hespanha Caruso, conhecido do público como Chico Caruso, nasceu no dia 6 de dezembro de 1949, em São Paulo. Filho do comerciante Paulo Caruso e da funcionária pública Mariana Hespanha, descendentes de espanhóis e italianos, ele foi influenciado profissionalmente não pelos pais, mas sim pelo avô materno, o desenhista e caricaturista Francisco Hespanha. Seu estímulo foi determinante tanto para Chico como para seu irmão gêmeo, o também cartunista Paulo Caruso. “Meu avô era uma pessoa sensacional, muito inteligente. Tocava violão e piano de ouvido, e fazia pinturas a óleo. Quando a gente tinha seis anos, já começou a botar telas e tintas na nossa mão – e assim pintamos os primeiros quadrinhos, tanto eu quanto meu irmão”, conta.
INÍCIO DA CARREIRA
Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Chico Caruso nunca atuou como arquiteto. Começou a trabalhar como cartunista, ainda estudante, em 1968, no jornal Folha da Tarde. O início de sua trajetória foi profundamente marcado pelo arbítrio dos tempos. Com a promulgação do AI-5, teve de se limitar a ilustrar crônicas: “Eu ia uma vez por semana no jornal, pegava as crônicas todas, rasgava o papel na medida, pegava um pincel grosso e uma pena, lia os títulos das matérias e jogava a tinta. Ilustrava 15 crônicas em meia hora. Uma vez eu li o título ‘O papa sabiá’ e fiz um cara comendo um sabiá. Depois vi publicado, e era ‘O papa sabia’. Saiu assim mesmo”. Diverte-se: “comecei a prestar mais atenção ao texto”.
Passou a colaborar com o jornal Opinião, a partir de 1972. Como a combativa publicação era carioca, Chico Caruso vinha para o Rio de Janeiro durante a semana e tinha que voltar depois para São Paulo, onde ainda cursava Arquitetura. Acompanhou o grupo dissidente da publicação na criação do jornal Movimento, em 1975. Passou ainda pela Gazeta Mercantil e pela IstoÉ. Nesta revista, publicou uma charge sobre o general Figueiredo que chamou a atenção do cartunista Lan e lhe rendeu um convite para trabalhar no Jornal do Brasil. Assim, em 1978, Chico Caruso começava no JB e se mudava em definitivo para o Rio. Nesse período, para driblar a censura, ele e seus colegas de profissão precisaram criar diferentes soluções para retratar um mesmo assunto. Era comum que fizessem desenhos altamente críticos apenas para que fossem cortados e, assim, oferecer, como alternativa, aqueles que queriam mesmo ver publicados.
ANTES DO GLOBO
Chico Caruso ficou mais de cinco anos no JB, ao lado de profissionais que admirava, como o próprio Lan e Ziraldo, até que, em 1984, iniciou sua trajetória em O Globo, jornal que o vinha sondando havia um tempo. “O Globo tinha, nas segundas-feiras, uma página com cor onde eles publicavam geralmente uma foto de futebol, e eu sempre fiquei pensando naquele troço. Fazer uma charge colorida na primeira página seria um negócio interessante”, conta ele, que foi ao jornal fazer a proposta. Já haviam passado por O Globo grandes desenhistas, como Loredano, Raul Pederneiras e Nássara, e a ideia foi recebida pelo jornalista Roberto Marinho como forma de resgate da tradição. No começo, Chico Caruso fazia uma charge colorida na primeira página, às segundas-feiras, e no restante da semana desenhava em preto e branco nas páginas internas. Depois, passou a publicar suas charges diariamente na capa.
Para produzir um desenho representativo do tema mais importante do dia, ele buscava se alimentar de informações, lendo os principais jornais brasileiros logo de manhã cedo. “Não adianta pensar numa coisa genial se você não consegue traduzir aquilo numa imagem forte. Aí você fica rabiscando, até que vai chegando a hora do fechamento e você vê, naqueles rabiscos todos que fez, o que é mais pertinente”, explica.
Sua primeira charge de grande repercussão retratou de forma lírica a agonia do país com a doença de Tancredo Neves. Em 1985, uma semana antes da morte do político eleito presidente do país pelo Colégio Eleitoral, Chico Caruso fez o desenho de um balão escapando da mão de um garotinho, vestido de verde e amarelo. No balão, estava o rosto de Tancredo. Anos depois, outra charge de impacto mostrou a ex-primeira dama Rosane Collor vestida de presidiária. Neste último caso, uma característica marcante do trabalho do chargista chamava atenção: o humor. “O humor tem uma função humana de superar os problemas. Quando ri de algo, você mais ou menos superou aquele negócio e não está levando aquilo tão a sério. Se o humor político tem uma função social, talvez seja esta: a de superar os atrasos”, avalia.
Desde a redemocratização, todos os presidentes se tornaram personagens constantes de Chico Caruso em O Globo. Eles tiveram que lidar com críticas duras recebidas por meio dos desenhos e viram suas características físicas destacadas em caricaturas. José Sarney, por exemplo, aparecia com seu bigode e sua jaqueta de imortal da ABL, enquanto Itamar Franco e Dilma Rousseff tiveram o topete ressaltado. Fernando Henrique Cardoso e Lula, porque ficaram oito anos no poder, foram aqueles que o chargista mais retratou. Os amigos também apareciam em seus trabalhos, mas de forma carinhosa, com homenagens. Em uma dessas charges, Chico Caruso desenhou Millôr Fernandes e Chico Anysio, que já haviam morrido, em um avião, dizendo que o mundo lá embaixo tinha ficado mais sem graça.
TELEVISÃO
Antes mesmo do início em O Globo, o chargista já atuava no Grupo. De 1983 até 1988, ilustrou momentos da política nacional no Jornal da Globo. Depois de uma pausa de uma década, voltaria a produzir charges animadas para a TV, em 1998. Esse trabalho permitiu a incorporação de movimento e som ao processo de criação, o que ampliou as possibilidades de apresentação das ideias ao público. Conforme as tecnologias de arte digital avançavam, a equipe do Jornal da Globo passou a utilizar os desenhos feitos para o jornal impresso para montar a arte na TV, enquanto a Chico Caruso cabia a tarefa de escrever os textos e gravar a voz da animação.
O CIRCO VENCEDOR EM 1976
Antonio Holfeldt, foi vice-governador do Rio Grande do Sul; professor doutor da APUC/RS, texto originalmente publicado no livro “Balas não matam ideias” em 2013, pela Secretaria Municipal da Ação Cultural e organizado por mim e pela publicitária Letícia Ciasi. Estávamos começando a sair da ditadura. Mas ainda havia mortes – Vladmir Herzog, por exemplo, em 1975 – e muitas proibições. É neste contexto que Chico Caruso, sempre atento aos contextos, idealiza esta charge, vencedora do concurso de 1976: o espaço é o circo. No picadeiro, deveria ocorrer uma apresentação do palhaço. É provável que o público ali reunido, estivesse à espera de uma anedota, função tradicional do palhaço. Mas então aparecem dois policiais, com as indefectíveis capas, sem qualquer identificação facial: eram assim os esbirros da ditadura. O palhaço é preso e levado para fora do picadeiro. Nas arquibancadas, os grandes e expressivos olhos frustrados dos espectadores são tudo o que sobra.
A charge é mais do que evidente. Ela é expressiva, claro, mas ela consegue propor duas leituras simultâneas para o receptor. De um lado a referência ao contexto imediato: sempre corremos o risco de sermos presos por algo que fizemos ou não fizemos, mas dizem que fizemos. De outro, o espetáculo que deveria ser o do circo da gargalhada, transforma-se no circo da tristeza e da ausência pela prisão. E ainda que todos vejam e saibam o que ocorre, não há haverá um que se aventure a libertar o palhaço. E são tantos mais! Mas o medo impera, e os policiais saem com o palhaço em suas mãos. Parodiando o filme “Em nome da rosa”, de Jean-Jacques Arnaud, por sua vez baseado no romance homônimo de Umberto Eco, a charge dá o seu último recado, a lembrar a todos que é proibido sorrir, não se pode ter alegria, está interditado a gente ouvir o outro, e o picadeiro, assim, fica vazio: assiste-se ao nada.
BASTIDORES DO SALÃO DE 76
No primeiro catálogo da história do Salão, ocorrido justamente em 1976, quando Chico ganhou o primeiro lugar, e reeditado só em 2018, conta-se uma breve história dos bastidores daquele ano, que transcrevo abaixo.
“Se durante dois anos, o Salão de Humor de Piracicaba foi caracterizado como estático, quando na realidade deveria assumir uma posição de debate, e crítica do momento artístico brasileiro, onde já tinha deixado seu timbre, sua situação ficou fortalecida no terceiro empreendimento.
O apoio dado pela Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, foi decisivo para que na terceira realização, o humor tivesse em Piracicaba, uma fresta para o debate.
Ainda não oficializado, permitiu que a Sharp do Brasil, participasse da promoção, oferecendo o maior prêmio que o humor gráfico já tinha ouvido falar em todo o país, CR$ 70.000 (setenta mil cruzeiros), que trouxeram à Secretaria do Salão, 413 concorrentes e 1200 trabalhos.
A Comissão de seleção, formada por Jaguar (Pasquim) e Jacob Klintowitz (Jornal da Tarde) e coordenada pelo Zélio, selecionou 150 trabalhos, que um dia antes da abertura, foram analisados por Mino Carta, (revista Veja) Sonia Hirsch ((Riográfica Editora), Sérgio Aragonez (Revista Mad Magazine), Geofrey Dickson (da Punch, de Londres) e Hermenegildo Sabat (jornal Clarin, Argentina), componentes da Comissão de Premiação.
Eram três e meia da manhã do sábado, quando ficou definido o primeiro prêmio do Salão: o de Chico Caruso e sua anomalia circense.
Contudo, a importância gráfica do humor e o estabelecimento de um quadro real da posição do artista gráfico, trouxe a Piracicaba, cartunistas e desenhistas de quadrinhos de todo o país, que durante aqueles dias, discutiram sobre a profissionalização do campo.
AGRADECIMENTOS
Quero, por fim, expressar meus agradecimentos ao Diretor do Salão de Humor de Piracicaba, Junior Kadeshi, que mesmo curtindo suas merecidas férias nesta semana, conseguiu, através da sua equipe, nos enviar muitas fotos do nosso homenageado de hoje que fazem parte do rico acervo do Salão. E igualmente, agradeço ao amigo, e um dos fundadores do Salão, Fausto Longo, que nos privilegia com uma colaboração especial editada também nesta página.